Teles Pires: rio mais impactado por hidrelétricas na Amazônia gera lucro para empresas de sete países da Europa e EUA

Desde 2019, quatro hidrelétricas atuam simultaneamente no rio; impactos da intervenção vão desde a retirada de 200 famílias até a emissão de gases de efeito estufa
Mulheres lideranças Munduruku caminham sobre pedrais da Usina Hidrelétrica de São Manoel. Foto: Divulgação / Coletivo Proteja
Por Letícia Messias | O Globo

O rio Teles Pires, que corre entre os estados de Mato Grosso e Pará, já foi fonte de pesca, lazer e transporte para povos indígenas. Desde 2014, porém, a privatização da torrente tem gerado lucro para empresas de sete países do mundo. Com quatro hidrelétricas instaladas no local, hoje ele é o maior curso d’água privatizado na Amazônia, e agora movimentos sociais denunciam as consequências, que vão desde a retirada de 200 famílias da região até a emissão de gases de efeito estufa.

– Ele era um rio milenar e que corria livremente. Hoje, virou um imenso lago, de propriedade de diversas empresas. Os impactos são muitos, como a retirada e inundação da vegetação e as queimadas. Quinze mil hectares de floresta foram submersos e apodreceram dentro do lago, o que fez com que mais de 40 mil toneladas de peixes morressem – disse ao GLOBO Jefferson Nascimento, que é coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens de Mato Grosso (MAB-MT).

O primeiro empreendimento concluído na região foi a usina hidrelétrica Teles Pires, em 2014. Segundo Nascimento, ela foi projetada para produzir 1,8 mil megawatts (MW/h), energia suficiente para abastecer uma população de 13,5 milhões de habitantes. Entre os erros cometidos durante esta construção e apontados pelo coordenador estão a ausência da consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas afetados – um problema que, afirmou, foi repetido por outras hidrelétricas.

Construída no limite da terra indígena Kayabi, Munduruku e Apiaká, a usina de São Manoel foi o segundo projeto a ser executado, com obras que também foram realizadas sem consultar a população local, que perdeu áreas consideradas sagradas. Juntas, as usinas Teles Pires e São Manoel foram objeto de 15 ações civis públicas, propostas pelo Ministério Público Federal (MPF) durante a sua implementação.

Reservatório da Usina Hidrelétrica de São Manoel. Foto: Divulgação / Coletivo Proteja

– A comunidade pede que as empresas recompensem a população pelos impactos que causaram, e também fala sobre os locais sagrados que as empresas destruíram, principalmente a Teles Pires e São Manoel. Era onde os espíritos dos nossos antepassados viviam e, agora, tem gente sofrendo porque não tem mais o local onde possam ficar – disse Eliano Waro Munduruku, da aldeia Teles Pires.

As usinas de Colíder e Sinop foram as últimas construídas e, desde 2019, todas as quatro hidrelétricas instaladas no rio passaram a operar simultaneamente. Para reunir as denúncias feitas pelos povos locais e dar visibilidade sobre o assunto, em setembro deste ano foi lançado o site Teles Pires Resiste, projetado para ser um espaço em que as comunidades da região possam se informar sobre os impactos gerados pelos empreendimentos e realizar suas denúncias.

Segundo os fundadores do projeto, entre os acionistas que controlam as usinas estão investidores internacionais, bancos, fundos de pensão e empresas estatais de países como Catar, China, Espanha, Estados Unidos, França, Noruega e Portugal. Apenas na construção da Sinop, cerca de 200 famílias foram atingidas e, hoje, esperam a decisão da justiça por uma indenização justa.

– As indenizações foram péssimas. Algumas famílias receberam cerca de R$ 2,9 mil por hectare, sendo que, naquela época, o valor de mercado era de quase R$ 25 mil. Muitas pessoas não conseguiram adquirir outro pedaço de terra porque o dinheiro da indenização não foi o suficiente para que as pessoas reconstruíssem suas vidas – ressaltou Nascimento.

Mas os coletivos e pessoas que vivem no local também acusam um projeto que é ainda mais ousado: a Hidrovia Teles Pires Tapajós. Ele depende da construção de mais hidrelétricas ao longo do rio – são planejadas 29 grandes usinas e 80 pequenas barragens, o que impactaria diretamente cerca de 1 milhão de pessoas, incluindo 10 povos indígenas.

– Vários peixes estão sumindo do nosso rio, que está secando. Agora, está mais difícil achar comida para as famílias – disse Eliano. – Além disso, há o impacto social. A organização das comunidades ficou dividida porque entregaram alguns equipamentos para a coleta de mandioca, mas a máquina deu problema e não tem manutenção.

Atualmente, os povos Kayabi, Apiaká e Mundukuru vivem nas margens do rio Teles Pires. Eles são remanescentes de um período que remonta a milhares de anos antes da invasão portuguesa, quando havia uma extensa rede de trocas e comunicação por toda a bacia do Tapajós – processo que envolvia os rios formadores: Teles Pires e Juruena.

Desmatamento realizado pela Hidrelétrica de Sinop no assentamento Gleba Mercedes. Foto: Divulgação / Coletivo Proteja

Leia na íntegra a nota das hidrelétricas:

São Manoel:

“A Empresa de Energia São Manoel (EESM) vem cumprindo rigorosamente a legislação e atendendo a todos os requisitos e exigências dos órgãos competentes, inclusive no que se refere às ações e aos programas socioambientais previstos no licenciamento ambiental indígena, que foram previamente discutidos e aprovados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e pelas lideranças de cada etnia.

Ainda, a EESM entende que os planos ambientais das hidrelétricas localizadas no rio Teles Pires têm sinergias e complementaridades, e que a necessidade de eventuais articulações e integrações deve ser avaliada pelos órgãos responsáveis”.

Sinop Energia:

“A implantação e operação da Usina Hidrelétrica (UHE) Sinop não atingiu populações indígenas, pois está na região denominada alto-médio Teles Pires. A Sinop Energia jamais foi demandada por órgãos de controle sobre interferência direta ou indireta em território indígena.

No que diz respeito a indenizações, a Sinop Energia cumpriu rigorosamente os trâmites legais de negociação e pagamentos às famílias na área de influência do reservatório da UHE Sinop. Este processo foi discutido previamente com a comunidade e o Ministério Público Federal (MPF) e as negociações foram acompanhadas por advogados e assistentes técnicos.

As indenizações pagas pela empresa foram calculadas seguindo os preceitos estabelecidos pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e tendo como referência o ‘Caderno de Preços (protocolado no MPF em 23/10/2015). As avaliações do INCRA, MPF e da perícia judicial tratam apenas do valor da terra, desconsiderando todo o contexto da negociação realizada, que resultou também no pagamento de benfeitorias e doações, entre outras contribuições. Além disso, as perícias compararam os assentamentos com imóveis particulares e regularizados com registro imobiliário e valor mais elevado, desprezando as características da Gleba enquanto área pública sem titulação pelo INCRA. Por liberalidade da Sinop Energia, as construções e instalações foram indenizadas sem depreciações, como se fossem novas, independente do estado de conservação e da idade aparente identificada em campo. Outra evidência da regularidade do processo é que, atualmente, há diversas ofertas de lotes à venda no assentamento com valor equivalente ao que foi pago pela empresa. Essas ofertas de imobiliárias foram apresentadas em juízo para comprovar que o preço está de acordo com o valor de mercado”.

Procuradas, as hidrelétricas Colíder e Teles Pires não se manifestaram.

Reportagem originalmente publicada em O Globo

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