Maranhão registra três assassinatos em terras indígenas em apenas uma semana

Escalada de violência e conflitos voltaram a assombrar os Guajajara no início deste ano. Madeireiros e fazendeiros são apontados como os principais ameaçadores
Guardiões da Floresta queimam um trator e um caminhão usados por madeireiros ilegais na TI Arariboia. Foto: João Laet / Repórter Brasil

Wérica Lima | Amazônia Real

Raimundo Ribeiro da Silva, de 57 anos, é a terceira vítima das mortes violentas que vêm acontecendo em terras indígenas no Maranhão desde o início de 2023. Raimundo, que não era indígena, trabalhava como motorista do Polo Base da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), no município de Arame. Esposo da liderança indígena Marta Guajajara, foi assassinado a tiros na aldeia Abraão, na Terra Indígena Araibóia, na última terça-feira (31). Em menos de uma semana, outros dois casos com marcas de violência foram registrados, a morte de José Inácio Guajajara e de Valdemar Marciano Guajajara.

“O que sabemos é que o Raimundo foi seguido pelos dois homens, desde a aldeia Zutiwa até a aldeia Abraão. Dentro da viatura havia duas indígenas que conseguiram fugir. O Raimundo era casado com a Marta, descendente de um clã familiar importante da terra Araribóia. O que soubemos é que não tinha inimigos”, conta Luís Antonio Pedrosa, presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Maranhão (CEDDH), em entrevista à Amazônia Real.

No dia 25, o corpo de José Inácio Guajajara foi encontrado na BR-226. Ele teria sido assassinado um dia antes. A BR-226 passa dentro da aldeia Jurema, na TI Cana Brava, no município de Grajaú. A causa da morte de José Inácio continua indefinida, porque há duas versões contraditórias. A Polícia Civil do Maranhão informou à imprensa local que José Inácio foi assassinado a tiros. Mas laudo do Instituto Médico Legal (IML) indicou que ele morreu de “causas naturais”. No entanto, indígenas afirmam que José Inácio foi encontrado com marcas de espancamento e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) divulgou nota mencionando a morte em Cana Brava.

“A escalada de violência na região tem trazido medo e insegurança aos moradores. Somente este ano, este é o segundo caso de homicídio na TI Araribóia, além de outras duas tentativas no mesmo território e um homicídio no território Canabrava”, diz nota divulgada pela assessoria do MPI.

Segundo João Pedro Carvalho Guajajara, coordenador da Comissão de Caciques e Lideranças indígena da Terra Indígena Arariboia (Ccocalitia), da aldeia Ponta D’água, a versão de morte natural é contestada por eles. “Os parentes falam que ele tinha vários hematomas. Havia várias marcas nele. Não acredito que foi de morte natural não”, afirmou.

Quatro dias depois (28), o corpo de Valdemar Marciano Guajajara foi encontrado por indígenas com marcas de espancamento na cabeça em uma construção civil, no município de Amarante. O indígena morava na aldeia Nova Viana, na TI Araribóia, e fazia parte do grupo de Guardiões da Floresta, responsável por monitorar e denunciar invasões no território.

“O Valdemar foi um grande amigo meu, a gente brincava junto. A gente morava em uma aldeia. Só depois quando a gente casou que a gente se separou. Ele foi morar em uma aldeia e eu em outra. Eu não tinha muita intimidade com o Raimundo. Conheço muito bem a mulher dele, a Marta. Mas a gente percebe que era um cara legal, gente boa, trabalhava há muito tempo como  motorista da Sesai”, conta Frederico Pereira Guajajara, mais conhecido como Fred Maximu, liderança da aldeia Juçaral dentro da Terra Indígena Araribóia e próximo do município de Amarante onde Valdemar foi encontrado. 

Para Fred Maximu, que é coordenador dos caciques da região, os principais suspeitos são os invasores dos territórios indígenas que entram para roubar madeira. 

“Eu acredito que [os assassinos] são os madeireiros, eles sempre vêm ameaçando as pessoas que estão na linha de frente. Quando um indígena é assassinato, uma liderança, um cacique, um Guardião,  eu acredito que são eles [os mandantes], eles botam alguém para perseguir um indígena na linha de frente”, diz.  

“Quando um indígena é assassinado assim na cidade, é porque está sendo perseguido”, conclui. Além dos madeireiros, a pressão por parte de grandes fazendeiros aumentou no território, com o início do governo Lula. 

“A gente tem suspeita também dos fazendeiros porque a gente sabe que aqui no município de Amarante todo mundo ficou assustado depois dessa eleição do novo governo Lula e quando a Sônia foi eleita em São Paulo. Por esse motivo as pessoas  aqui do município de Amarante criaram mais raiva da gente porque o Lula garantiu demarcar as terras. Aqui em Amarante tem esse processo de ampliação da terra indígena Governador com a Montes Altos”, explica. 

“Esses assassinatos que vem ocorrendo no território a gente acredita que é uma forma de querer intimidar a nossa organização, nossa forma de proteger nosso território”, alertou João Pedro Carvalho Guajajara.

Em nota à imprensa na última terça-feira (31), dia do assassinato de Raimundo, o Ministério dos Povos Indígenas informou que iria fazer uma reunião de emergência com o governador do Maranhão, Carlos Brandão, a respeito da escalada de violência que tem trazido medo e insegurança aos moradores.

Segundo a assessoria de imprensa do MPI, a ministra gravou um vídeo e postou em suas redes sociais dizendo que estava aguardando para conversar com o governador do Maranhão (Carlos Brandão) para tomar providências.

“Estou agora aguardando para conversar com o governador do Maranhão e com a secretária de direitos humanos para a gente tomar as medidas cabíveis no sentido de exigir apuração, aprofundar as investigações para a gente desvendar sobre todos esses assassinatos que seguem impunes e também para enviar as forças de segurança pública para levar segurança na região”, disse Sônia Guajajara.

A assessoria de imprensa do MPI informou à Amazônia Real que as medidas solicitadas estão em andamento. “O governador recebeu as informações sobre o caso passadas pela Ministra e prontamente acionou a polícia estadual para atuar na apuração e deslocamento de efetivos para a região, e também solicitará ao Ministério da Justiça acompanhamento da polícia federal”, disse a assessoria, em resposta à reportagem. 

O advogado Diogo Cabral, que atua em defesa dos direitos dos indígenas e das comunidades tradicionais do Maranhão, afirmou à reportagem que não basta investigação policial, mas realizar ações de proteção dos territórios no estado.

“Se você não avançar na forma de combate de proteção aos territórios, pouco vai se resolver porque a questão central hoje no Maranhão é que as terras indígenas estão sendo invadidas. Bolsonaro estimulou, acabou com as ações de fiscalização, acabou com qualquer andar das investigações”, ressaltou Diogo Cabral, que presta assessoria jurídica voluntária para o Tuxa Ta Pa Me (Conselho de Gestão Ka’apor).

Escalada de violência

Os assassinatos recentes são as consequências trágicas e fatais do contexto de invasão nos territórios indígenas, mas a violência é maior do que se imagina. Quem escapa da morte, também sofre agressões e tentativas de homicídios. 

Amazônia Real fez um levantamento das mortes ocorridas de 2022 a 2023 na região com base nas informações das fontes ouvidas e com sites de notícia que divulgaram as mortes.

Em janeiro de 2023, mesmo mês dos três assassinatos, Benedito Gregório Guajajara e Juninho Guajajara sofreram tentativas de homicídio nas proximidades da aldeia Maranuwi, da Terra Indígena Araribóia,  na região do Lago Branco, no município de Santa Luzia. Ambos levaram tiros na cabeça disparados de um carro preto, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). A semelhança da tentativa de homicídio se repete com o caso de Raimundo Ribeiro, que foi morto por disparos vindos também de um carro preto no mesmo mês.

O funcionário da Sesai, Raimundo Ribeiro. Foto: Reprodução / Arquivo

Segundo o Cimi, em 5 de janeiro guardiões da TI Araribóia faziam monitoramento quando encontraram a sepultura de um indígena Awá, povo em isolamento voluntário. Conforme Olímpio Iwyramu Guajajara, coordenador dos Guardiões da Floresta, em relato dado ao Cimi, há suspeita de que o Awá possa ter sido assassinado já que a região é constantemente invadida por madeireiros e caçadores. O corpo não foi exumado para laudo a pedido do povo Awá. 

Luís Antonio Pedrosa contou à reportagem que o CEDDH está aguardando um retorno da Secretaria de Segurança Pública com relação aos casos de 2023 para poder emitir uma nota em relação aos assassinatos. Segundo Pedrosa, nenhum dos casos de janeiro de 2023 possui indiciamento até o momento. 

Desde 2022, outros três casos esperam resolução das investigações policiais. Em setembro do ano passado, Janildo Oliveira Guajajara foi morto a tiros no município de Amarante. O indígena fazia parte do Guardiões da Floresta desde 2018, projeto que monitora as ameaças nas TIs, e foi morto próximo a uma estrada aberta por madeireiros e fechada pelos Guardiões. Na ocasião, um indígena de 14 anos foi baleado, mas sobreviveu. O caso teve o inquérito concluído com indiciamento de autoria e foi enviado à justiça. 

Na madrugada do mesmo dia, no município de Arame, Jael Carlos Miranda Guajajara, de 34 anos, também foi morto e possuía marcas de espancamento. O caso ainda está em fase de investigação. Dias depois, houve o assassinato de Antônio Cafeteiro Silva Guajajara, que foi baleado com seis tiros no mesmo município de Arame. Na época, a polícia chegou a prender alguns suspeitos, mas não se sabe se eles permaneceram detidos.

Luís Pedrosa contou à reportagem que os inquéritos das mortes de Antônio Cafeteiro e de Janildo foi encerrado, mas não houve prisão dos indiciados. Já o assassinato de Jael continua com inquérito em andamento.

Além destes, há a suspeita de uma liderança indígena ameaçada, Sarapó Ka’apor, ter sido envenenada após comer um peixe que havia ganhado de um morador próximo da TI Alto Turiaçu. A exumação demorou mais de trinta dias para ser feita e o resultado da investigação foi considerado inconclusivo.

A respeito dos quatro assassinatos ocorridos em 2022, a assessoria de imprensa do Ministério dos Povos Indígenas disse que “a ministra pediu ao governador que os casos sejam devidamente investigados”. 

Estes casos somam-se a um histórico de ameaças, atentados e assassinatos de indígenas na região que não caíram no esquecimento pelo povo Guajajara. Até o momento, o assassinato de Paulo Paulino Guajajara, Guardião da Floresta morto em emboscada em 2019 tramita na justiça. É um dos poucos casos em que os acusados do crime devem ir a júri popular.  

“Nós nunca tivemos uma resposta desse processo que vem gerando assassinato aqui no nosso território no qual o Paulino foi assassinado, emboscado aqui no nosso território no meio da mata. Até hoje nós nunca tivemos resposta. Tem pessoas suspeitas, mas não sei o que que a justiça está esperando”, conta Frederico Pereira, que era amigo do Guardião.

Um levantamento feito pelo advogado Diogo Cabral com dados do Cimi, Apib e notícias de jornal, mostra uma série de assassinatos que ocorreram de 2009 a 2022 nas Terras Indígenas do Maranhão, grande parte advindas de ameaças por garimpeiros, fazendeiros e madeireiros. 

Dos 42 assassinatos registrados, 32 foram do povo Guajajara e 4 do povo Kaapor. As TIs com maior número de assassinatos que aconteceram em seu interior são Araribóia (7), Cana Brava (6) e Bacurizinho (4), além dos casos ocorridos nas proximidades dos territórios.

O número disparou no mesmo ano de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Foram 11 casos registrados naquele ano, o maior até agora. Em 2018, não houve registro de assassinato, mas logo após o ex-presidente Jair Bolsonaro assumir o poder em 2019, os casos voltaram a crescer, registrando quatro mortes no primeiro ano de governo. Não houve nenhum ano da governança de Bolsonaro em que a taxa de assassinato tenha zerado. 

Um mapeamento feito entre 2003 e 2021 pela a plataforma Caci, do Cimi, revela também uma intensa perseguição ao povo Guajajara: 50 assassinatos desde 2003, destes, 21 eram da TI Araribóia.

“É um número absurdo [de assassinatos], quase 5% dos casos desde 2009 foram devidamente investigados com identificação de autorias. É muito difícil você tratar desses crimes com a segurança pública do Estado do Maranhão, com esse sistema e com a própria Polícia Federal porque infelizmente a resposta tem sido muito lenta”, explica o advogado Diogo Costa. 

“Ninguém sabe de nada de fato, é uma distância muito grande do Sistema de Segurança Pública dessas realidades específicas, as investigações quando avançam, demoram muito”, acrescenta ao citar a demora nas investigações do caso Sarapó como exemplo. 

A situação é chamada por Diogo de “violência generalizada”. Apesar de urgente, ele revela que ainda não obteve resposta. “Nós solicitamos reuniões com o Ministério dos Povos Indígenas e ainda não fomos atendidos”, afirma. 

“O histórico em relação aos povos indígenas é de descaso do estado brasileiro. Desde o início se fundou no processo de aniquilação, de genocídio, essa gênese, essa essência ela não não foi completamente alterada, depois de quantos anos se criou o Ministério dos Povos Indígenas? Agora, depois de 500 anos de invasão”, frisa Diogo.

“Nos últimos anos as interlocuções foram muito difíceis mesmo sobre o governo Dilma, o governo Lula. Nunca foi fácil, nunca se atuou em relação ao combate desses grupos criminosos”, conclui. 

Guardiões da Floresta

A Terra Indígena Arariboia, abrange 413.288,47 de hectares e é a segunda maior TI do Maranhão. A pressão que ela recebe, está presente nas demais TIs do estado do Maranhão e advém de todos os lados: madeireiros, garimpeiros, fazendeiros e até o próprio tráfico de drogas está invadindo as TIs para plantação de maconha. O trabalho de monitoramento feito pelos Guardiões da Floresta ainda é solitário e sem apoio governamental. 

“A gente tem nossos guerreiros Guardiões da floresta que estão fazendo um trabalho hoje que deveria ser trabalho do estado brasileiro. Por essas represálias que muitos parentes estão sendo assassinados, por a gente lutar por uma coisa que é nossa sobrevivência, da nossa vida, dos nossos povos”, acrescenta. 

Durante a ação de vigilância na Terra Indígena Arariboia, os guardiões queimam um trator e um caminhão usados por madeireiros ilegais. Foto: João Laet / Repórter Brasil

João teme ser o próximo alvo e agora tem optado por não ficar mais andando nas cidades o tempo todo. “A gente está aqui na base, sei que é perigoso. Qualquer hora eu também posso [morrer]. Eu sou ameaçado. A qualquer hora vocês podem ter a notícia que podem ter ceifado minha vida, assim como outros parentes de frente. Somos ameaçados através do nosso território, mas se a gente não defender o nosso território, quem que vai defender? Mesmo perdendo vidas, a gente está lutando”, explica. 

“Estamos todos com muito medo. Há dois anos atrás eu estava ameaçado também”. O relato é de Cláudio Guajajara, da aldeia Massaranduba, na Terra Indígena Caru, no município Bom Jardim no Maranhão. Apesar de não morar nas Terras Indígenas onde aconteceram os últimos assassinatos, ele também teme virar alvo e já trabalhou junto aos indígenas da Araribóia. 

“Na verdade, todos nós que lutamos em defesa das floresta estamos ameaçados”, diz. Coordenador na região, Cláudio conta que as TIs do estado estão completamente ameaçadas. Nos últimos monitoramentos, Claúdio tem recorrido à polícia para apreender armas caseiras que servem de armadilha para quem se aproxima de plantações de maconha presentes na TI Caru. 

Audiência sobre os crimes

O Conselho Estadual de Direitos Humanos do Maranhão (CEDDH) está preparando uma audiência pública que vai ser feita em parceria com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (Coapima) e com a presença dos ministérios do governo Lula. A data da audiência ainda deverá ser marcada. 

Valdemar Guajajara, indígena que também foi assassinado. Foto: Apib / Arquivo

Luís Pedrosa diz que a proposta do CEDDH aos órgãos é que haja uma política de cooperação entre os órgãos federais e estaduais. O resultado de tantas mortes e conflitos, segundo ele, advém também da falta de fiscalização no estado e consequentemente, da promoção de atividades ilegais em Terras Indígenas. 

“É necessário fiscalizar as rodovias e desarticular as serrarias, onde tem início a cadeia produtiva da madeira clandestina. Tem rodovias federais na região, onde a polícia rodoviária federal poderia estar presente. Mas também tem as rodovias estaduais, além das entradas madeireiras dentro da floresta”. 

Para Luís, a secretaria estadual de meio ambiente, o batalhão de polícia ambiental, a polícia civil e a própria Polícia Militar “poderiam dar uma contribuição importante para desativar essa cadeia produtiva, já que a presença dos órgãos federais é mais difícil e mais demorada”. 

“A PF, depois da posse do governo Lula, passou a se movimentar bem melhor, mas na região da Arariboia ainda não marcou presença efetiva. De igual modo o Ibama e a Funai, que ainda aguardam a indicação de seus representantes”, conclui. 

Frederico Pereira relata que há muitos anos uma fiscalização permanente vem sendo reivindicada no território. “A gente não quer mais viver  ameaçado. A gente não quer mais perder a vida. A gente não quer mais viver isolado. A gente quer viver em tranquilidade, em paz, viver livre de violência, dos assassinatos que vem ocorrendo aqui no nosso território”, desabafa. 

Amazônia Real tentou contato com a Secretaria de Segurança Pública do Maranhão através do número disponível no site, mas não foi atendida.

À Polícia Federal do Maranhão, foram encaminhadas perguntas sobre todos os casos de assassinatos ocorridos entre 2022 a 2023, incluindo uma resposta sobre o que o órgão tem feito para combater os eixos que ameaçam as Terras Indígenas, mas o órgão não respondeu. A Funai também foi procurada, mas não respondeu às perguntas até a publicação desta reportagem.

Reportagem originalmente publicada em Amazônia Real

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